quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

mágoa de criança

O maior conflito existente em escrever o cotidiano, o que eu me proponho a fazer, tem sido não expor as pessoas. É claro que, de uma forma ou de outra, eu consigo, lá e cá, fazer um ou outro texto ainda mais bonito por não poder simplesmente dizer "Fulano, eu penso isso, isso e isso de você", cheio de rodeios e metáforas; tudo bem, tudo em prol da poesia, mas no fim das contas eu acabo não escrevendo muitos e muitos sentimentos e acontecimentos, e morrem aqui dentro muitas coisas que, em palavras e fora de mim, seriam de muito maior serventia e muito menor dor.
Mas hoje eu optei por expor alguém. É que o risco vale, mesmo se ela mesma ler isso daqui. Aliás, se você estiver lendo, me desculpe pela exposição, mas as palavras estão explodindo aqui dentro.

Minha mãe me criou de um jeito muito particular, mas não sei se totalmente alienado. Ou vai dizer que ela não sabia que as roupas e sapatos de marca e muito mais caras que as outras que ela me dava guardavam essa diferença? Eu consigo acreditar que ela realmente tinha a intenção de não me deixar sucumbir nesse mercado que a gente vive, e me mostrar que muito mais importante do que isso, e em primeiro lugar, vinham o nosso caráter, o respeito por todas as pessoas, a simplicidade, a cultura, o estudo.
Certa vez, veio de acontecer esse episódio, que já data de dez anos atrás e nunca saiu da minha memória: eu tinha uma "amiga", uma das primeiras amigas, que só tinha roupas e sapatos caros e de marca, e eu não entendia, simplesmente; era mais que natural que eu não compreendesse a importância da marca daqueles objetos e o descaso com que eu via tudo aquilo. Era bem assim: eu com dez anos, uma criança mesmo, sem noção de dinheiro e recheada de outros valores, sendo apresentada a um casaco de couro "que a mãe dela tinha comprado não por 450 reais, mas por 280". Seu aniversário chegou e eu e minha mãe compramos a ela uma blusa, baratinha (aqui dentro, sou capaz de me lembrar da cor, da textura, do modelo e do preço, com detalhes), numa dessas lojas de galeria, e ela alguns dias depois me disse, com essas palavras (imagina, se eu consigo me lembrar perfeitamente da textura da blusa, como esquecer essas palavras?): "porque aquela blusa que você me deu, por exemplo, eu vou usar porque você me deu, mas eu jamais compraria ela se não estivesse na vitrine da Cantão." Se foi mágoa de criança, eu não sei, sei que meu pobre e terno coração, o mais terno de todos, modéstia a parte, nunca mais conseguiu olhar para aquela menina e não se lembrar dessa frase.

Essa digressão flashbéquica, do nível daquelas do LOST, possui a mesma razão de existir: tentar fornecer ao leitor um pouco do que me levou a ser impressionada hoje pelo que aconteceu hoje.
Depois disso tudo, e bem depois, na verdade, eu aprendi que roupa é um objeto social, e que é necessário se vestir bem, e muitas vezes difícil fazê-lo com roupas extremamente baratas; mas, eu juro, mesmo a partir de quando eu já tinha dinheiro para comprar a roupa do preço e da marca que eu bem entendesse, eu sempre mantive um mínimo de noção sobre o preço do que comprar ou não. E o ponto que eu quero chegar é justamente que isso também não é importante.

Um dia, eu te ofereci cinquenta reais pra que você fizesse um trabalho pra mim. E deixo aqui minha ressalva: não é que eu pense que posso comprar tudo no mundo, ou que posso colocar preço na educação, foi uma ajuda remunerada que eu te pedi. E você aceitou e não teve sequer a coragem de pegar o dinheiro. E me disse: "Vamos fazer assim: semana que vem a gente vai na rua e você compra um sapato pra mim!" 
Meu primeiro pensamento foi aterrorizante, eu imaginei um dos últimos sapatos que eu comprei, a cem, cento e cinquenta reais cada um - e olha que eu ainda seleciono o preço! Por fim, hoje nós fomos na rua, eu entrei numa dessas lojas que vendem um zilhão de sapatos e nas vésperas do natal estão sempre lotadas de gente comprando sandálias no crediário por 5 vezes de 10 reais (e que não me entendam mal, é uma DESCRIÇÃO OBJETIVA, e nunca, jamais, passaria perto do pejorativo), e paguei trinta reais por um tênis. Trinta reais é o que eu gasto numa noite normal de quarta feira numa pizzaria. Trinta reais é o meu almoço de terça no shopping. Eu já não passo mais um fim de semana com apenas trinta reais. Você sorriu de orelha a orelha, colocou no pé e saiu feliz pela rua, e nem se deu conta do turbilhão de pensamentos que me atingiram durante toda a tarde.

Não seria essa a real nobreza? Estar o tempo todo cercado de meios que te dizem o que (não) fazer, como (não) se vestir, como (não) se expressar, o que (não) comer, como (não) agir, e ainda assim nem se importar? Eu, nesse minuto, sinto muita vergonha de ter escrito tudo isso, de ter sentido tudo isso e ainda assim continuar agindo da mesma maneira (posso colocar a culpa na incoerência ambulante que fui-tenho-sido-sempre-serei? e publicar também quando escuto que eu deveria me importar com a quantidade de televisão que eu assisto que me torna pessimista e sonhando sempre com o que não posso ter? e quando eu implico que ele deixa comida no prato e ele me lembra que eu compro botas de duzentos reais?), mas mesmo assim, resisto, e publico, deixando aqui a minha declaração de admiração pela simplicidade que você, ao contrário de muitos de nós e de mim, inclusive, consegue manter diante desse nosso meio tão influentemente estúpido. Dentre os seus vários defeitos, como falar demais e o tempo inteiro, e ser ingênua de maneira atrapalhada, eu me sinto hoje reconhecendo a sua maior qualidade, a simplicidade, que é o que as pessoas mais vivem buscando sem conseguir enxergar. Aquelas que te dizem o que fazer, que esbanjam sua própria felicidade monetária e tentam nos convencer de que nossa ambição é ser iguais a elas, buscam, bem lá no fundo, a paz de enxergar, um dia, quem sabe, tudo o que gira em torno delas com a pureza de uma criança, com a mesma sensibilidade que você enxerga o nascer do sol, sem amargura, sem angústia, sem raiva, ou mau humor.

Me resta sentir pena, que é sentimento mais feio que se pode ter por alguém. E tomar como (mau) exemplo, pra que a minha ambição continue sendo sempre crescer sem perder a simplicidade (e muito menos a dignidade).

Escrevi muito. Deixo vocês com dois trechos de um texto muito maravilhoso de Rubem Alves, chamado "Sobre Simplicidade e Sabedoria", e recomendo a leitura aos que ainda possuírem um pingo de paciência:

"No crepúsculo, quando a noite se aproxima, o vôo dos pássaros fica diferente. Em nada se parece com o seu vôo pela manhã. Já observaram o vôo das pombas ao fim do dia? Elas voam numa única direção. Voltam para casa, ninho. As aves, ao crepúsculo, são simples. 
Simplicidade é isso: quando o coração busca uma coisa só."
"Diz Guimarães Rosa que 'felicidade só em raros momentos de distração...' Certo. Ela vem quando não se espera, em lugares que não se imagina. Dito por Jesus: 'É como o vento: sopra onde quer, não sabes donde vem nem para onde vai...' Sabedoria é a arte de provar e degustar a alegria, quando ela vem. Mas só dominam essa arte aqueles que têm a graça da simplicidade. Porque a alegria só mora nas coisas simples."

3 comentários:

May disse...

Então, nessas pequenas coisas que se mostram grandes pessoas, não é? E na simplicaidade, ingenuidade ou sei lá o que é que ela é, enquanto uns apontam o dedo para o defeito, queria eu que metade do mundo fosse metade sincera, simples, transparente como essa menina. Tenho a mesma vergonha q vc tem, de mim mesma, e pelos outros.

kinha disse...

É complicado, só posso dizer que esse texto me fez pensar...

Andrey Brugger disse...

Moça bonita, genial o texto!

Acaba que exemplos de simplicidade e esnobação explodem a toda hora. A gente tem que selecionar.

Sempre achei que simplicidade fosse o que tocava. Tenho cada vez mais certeza que é isso mesmo.

Ser simples não é ser bobo, que fique claro isso.

beijos, lindissima