segunda-feira, 9 de novembro de 2009

depois do final feliz...

Um belo dia, eu fui apresentada a essa história e a partir desse dia sempre achei que todo mundo devia ler. É um pouco grande, tem gente que tem preguiça, mas é tão bonito...


O Sabiá e a Girafa

O Sabiá

Sabia que o sabiá sabia assobiar? Dizia o meu avô. 
Sabia que o sabiá sabia avoar? Avoa, vô, avoa. E de ave ele entendia.
Mas o sabiá da minha história não sabia avoar. Assobiar ele sabia. 
Mas, que mais batesse as asas, o sabiá não subia.
Avoa, sô, avoa! O pobre não decolava. Pulava lá do galho, aterrizava na
bacia.
Não desistia o sabiá. Saltava, caía, pulava, caía, tentava, caía. Sabiá na bacia. 
À toa, sô, à toa. 
Todo mundo até ria, mas no fundo já sabia: o sabiá não sabia avoar.
Vivia a assobiar seu apetite: comer o ar, caber no ar.
Passar por cima das casas, das ruas, das gentes, do medo.
Passar de passarinho, passear devagarinho, sem pra onde nem caminho. 
À toa, à toa, a esmo. Só queria mesmo avoar.
Sonhos também havia. Asas arranhando a barriga das nuvens, vôos
atravessando a manhã vazia. 
Mas, entre as trapaças da brisa, o sabiá não saía.
Assobiava que eu nem te conto. Antes, o canto de tenor, a cor na noite escura. 
Depois, o canto de temor, a dor da falta de altura. 
Cantava que eu nem te canto, o sabiá desencantado.
Dias de sonhos rasantes, noites de sono arrasado. 
Mas ele, ressabiado, teimava em assobiar. 
Dorremifava macio, no galho ou na bacia, o desejo de avoar.
Um dia, o sabiá dizia, um dia eu consigo avoar.
 
 A Girafa

Girafa o meu avô não conheceu. Nunca teve o prazer, não foi apresentado.
Mas o velho deitado dizia: filho de peixe, peixinho é.
Isso vale pra outros bichos. Girafa também é sempre igual.
Nada fala, tudo espia. Sem um pio, sem um fio de voz. 
Só em riso e pensamento, ironiza o mundo no andar de baixo.
Mas a girafa da minha história era muito diferente. A muda queria mudar.
Não o mundo, mas a vida. Queria enganar o silêncio que lhe esganava a garganta.
Queria encolher a dor de não escolher as palavras. Queria desemudecer.
E não bastava soltar umas palavras no vento. Também sonhava em cantar.
Sonhava encantar o dia, molhar as tardes de poesia, melar o canto da noite com
doces melodias.
Prestava atenção no trovão, no temporal, na ventania.
Tentava imitar o azulão, o rouxinol, a cotovia. Mas a voz não derramava.
Então reclamava baixinho: para que tanta altitude, pra cantar só passarinho?
A girafa andava injuriada. Andava toda a cidade, do alto dos seus andares,
adorando a paisagem. Mas ficava na saudade o canto de homenagem.
Um dia, jurava a girafa, um dia eu consigo cantar.

O Sabiá e a Girafa

O encontro se deu por acaso, por acaso o deus dos encontros.
O sabiá resolveu chorar no alto de um pé de caju. 
A girafa se lamentava no baixo daquele pé. 
Uma árvore muito esquisita, mas desgosto não se discute.
Estavam os dois ali. Os dois no mesmo pé. Ela vendo o que não cantava.
Ele cantando o que não conhecia. 
Ele queria saltar nas alturas. 
Ela sonhava assaltar partituras.
E a dupla melancolia — ou foi a tal natureza? — tratou de cruzar os caminhos. 
A sabedoria do vento mandou o sabiá pro espaço. Pra ver se ele avoava.
Pra ver se acertava o compasso, o sabiá avoado.
Mas ele caiu de cabeça na cabeça da girafa. Silêncio. Sabiá assustado.
Contudo, depois do susto, o coitado gostou do que viu. 
Cada passo da girafa passeava ele no céu.
Cada girada do pescoço, um horizonte descoberto. 
E ele recomeçou a cantar.
A girafa ficou fascinada. 
Aquela voz afinada soltou sua cara amarrada.
Desfez a careta enfezada. 
Ofereceu então moradia ao dono de tal melodia, de canto tão doce e terno. 
E o canto do sabiá virou o seu canto eterno.
O sabiá ficou morando na cabeça da girafa. A girafa, namorando o canto do
companheiro.
Minha história acaba aqui. Mas a dos dois continua, sem platéia nem juiz,
depois do final feliz.  
Léo Cunha

Há quem diga que é uma história de amizade e solidariedade. Há quem diga que consiste em uma espécie de "psicologia de ensinamento" para que as crianças aprendam a lidar com as dificuldades da vida. Eu não sei não...pra mim, é muito simplesmente uma linda história de amor, que descreve metafórica e poeticamente aquilo em que realmente se baseia (ou pelo menos deveria) o amor: complementação. Encontrar no outro sempre um pouquinho do que em você não há e fornecer o que o outro procura; sem cobranças, sem esperas, com naturalidade e leveza; exatamente como os bichos lidam com a vida.

Ah! Além disso, usa como protagonista o meu passarinho preferido, porque canta bonito e é grande , e muitas vezes vermelho, e se for do papo amarelo, melhor ainda.  

"o sabiá no sertão quando canta me comove
passa três meses cantando, e sem cantar passa nove
porque tem a obrigação de só cantar quando chove"

"sabiá de laranjeira tu bicaste o meu melão
a fruta mais brasileira, mais uva, mais fruta-pão..."

No mais, uma boa noite.



"
eu sou, sou sua sabiá
o que eu tenho eu te dou
e tenho a voz
só tenho a voz
cantar, cantar, cantar, cantar...
"




3 comentários:

Andrey Brugger disse...

"Queria encolher a dor de não escolher as palavras. Queria desemudecer."


Ai ai, você vindo pra abençoar esses dias aí, esse ótimo começo de semana! Caramba, que bom achar a tua pessoa nessa vida! :)

Que a parceria cresça e seja doce!

beijoos

Vital disse...

"desgosto não se discute" tudo bem que não é a idéia principal do texto, mas foi foda por demais isso!
adorei o texto mesmo como voce havia me previnido!
maravilha de história bunita, beijo!

kinha disse...

Me lembrou muito aquele filme "The Mighty" que é batido mas me fez chorar...hehehehe
É uma bela história!